Margaret Thatcher certamente desaprovaria mas, por White Hart Lane, a história repete-se. Mais uma vez, há um argentino herói de culto e referência do Tottenham Hotspur. Ao contrário daquilo que aconteceu durante os anos ’80, ainda assim, não é sobre o relvado que essa figura heroica toma forma. Foi sobre o campo que Ricardo Villa fez 25 golos e foi, sobre o campo, que Ossie Ardiles, emergiu como uma das grandes figuras dos Spurs da era mais moderna do futebol. Em 2015 há mais um argentino a figurar a lista de notáveis de um clube com uma classe muito própria. Ele é, naturalmente, Mauricio Pochettino, um argentino ao serviço de sua majestade.
Pochettino faz mais hoje, ou tem feito nos anos recentes, que o próprio selecionador inglês. Se Roy Hodgson, fora as qualificações irrepreensíveis, ainda não conseguiu transportar a selecção de Inglaterra para os patamares das décadas onde reinavam o futebol internacional, tal não aconteceu por culpa de Pochettino. Depois de lançar, enquanto treinador do Southampton, nomes como Adam Lallana, Jay Rodriguez, Nathaniel Clyne, Callum Chambers, Luke Shaw ou Rickie Lambert para as listas de selecionáveis da formação inglesa, a sua chegada a White Hart Lane permitiu que nomes como Eric Dier, Harry Kane, Ryan Mason e, mais espectacularmente, Dele Alli, se tornassem em alguns dos mais recentes internacionais ingleses. Na verdade, Pochettino é responsável, directa ou indirectamente, por metade dos novos estreantes internacionais ingleses. Lallana, Rodriguez, Clyne, Chambers, Shaw, Lambert, Dier, Kane, Mason e Alli são dez dos últimos 18 “rookies” chamados por Roy Hodgson para integrar as convocatórias da selecção dos Três Leões. O que Southgate resolveu desperdiçar no último Europeu de Sub-21, começa agora a desenhar-se como o futuro da selecção de Inglaterra.
Pochettino tem, aliás, uma relação sempre muito próxima com a juventude. Por todos os clubes que passou, a formação tem tido um papel fulcral na constituição das suas equipas. Na Catalunha, enquanto técnico do Espanyol, promoveu vários atletas à equipa principal e, a certa altura, apenas três equipas primo divisionárias utilizavam mais jogadores da cantera que os Periquitos. Este ano, por exemplo, no embate frente ao Manchester City da primeira volta, o Tottenham apresentou o onze mais jovem da liga até ao momento. Para Pochettino não importa a idade. Tenham 17 ou 31, se estão prontos, é para jogar. Onomah, Edwards ou Carter-Vickers já esfregam as mãos de satisfação.
APRENDER COM OS ERROS E EVOLUIR
Pochettino e Tottenham, mais do que uma ligação profissional, são dois dos grandes exemplos de que, no futebol, tal como na vida, se evolui aprendendo com os erros. Jovem, Pochettino é ainda um treinador em mutação. Ainda a atravessar a puberdade no que ao futebol de banco diz respeito, Pochettino é hoje mais treinador que o era em Southampton. Naturalmente. La Palice não diria melhor. Mas, se em Southampton, Pochettino demonstrou ser capaz de montar um ataque super dinâmico e vistoso, capaz de montar uns Saints fortíssimos quer em organização, quer em transição ofensiva (com Lallana a assumir o papel de melhor jogador inglês durante tal período), o Southampton era, contudo, uma equipa que sofria bastante em todo o processo e momento defensivo. Especialmente, em transição defensiva (os erros que Lovren cometeu e, ainda assim, conseguiu transferir-se para Anfield). Apesar do honroso oitavo lugar e, por muitos, considerado como a surpresa da temporada, o Southampton não deixou de ser uma das equipas da primeira metade da tabela com mais golos sofridos. E bastou a Koeman, por exemplo, solidificar os processos defensivos dos Saints para que, na temporada seguinte, o clube de Southampton terminasse a temporada ainda mais bem posicionado que o Southampton de Pochettino.
Hoje? A história é bem diferente. Mesmo tendo em conta que o quinteto Lloris, Walker, Alderweireld, Vertonghen, Rose é superior ao seu quinteto de Southampton na zona central, em termos qualitativos natos, os vinte golos sofridos em 24 partidas até agora na Premier League são um dado impressionante. Isto, mantendo a qualidade ofensiva que já vinha demonstrado no St. Mary’s (qual é mesmo o ditado que um defesa central dá sempre um treinador defensivo?). Pochettino mutou-se, evoluiu, e é hoje um treinador cada vez mais completo e o seu Tottenham é, por ventura, a única equipa da Premier League, em 2016, que domina perfeitamente todos os momentos de um jogo de futebol. O Tottenham de 2015/16 é forte em organização e transição, quer defensiva, quer ofensiva. É, de longe, a melhor defesa da liga e em apenas um golo é superado pelo Leicester City como o melhor ataque. Os Foxes até poderão estar a fazer uma época de sonho mas, em termos técnico-tácticos, o Tottenham parece mesmo o mais forte candidato ao título por estar altura.
A METEÓRICA ASCENSÃO DE BAMIDELE
Se havia coisa que vinha caracterizando o Tottenham dos tempos recentes, era a sua capacidade especialmente absurda para gastar dinheiro em alvos totalmente falhados, com o caso mais recente, e mais óbvio, em toda a movimentação do clube no pós-Bale. Contudo, com Pochettino, este paradigma alterou-se (mesmo tendo em conta o dinheiro gasto em Son Heung-min) e os Spurs são hoje uma equipa mais incisiva e mais certeira no mercado de transferências (esqueçamos N’jie). Prova disso mesmo foi a contratação de Dele Alli, por cerca de 6M€, que surge hoje como um dos maiores “roubos” do futebol inglês recente.
Bamidele Alli. Tal como tantos outros jovens da moderna Inglaterra, e o futebol tem exemplos que não acabam (especialmente com origem na Jamaica), Alli é descendente de pai emigrante mas nativo inglês. Fez toda a sua formação por Milton Keynes e foi no MK Dons que despontou (e explodiu) para o futebol. Alli só enganou quem o desconhecia e, o estranho, é que possam ter sido tantos. Depois de se assumir como uma das grandes figuras da League One em 2014/15, temporada em que ajudou o MK Dons a humilhar o Manchester United com uma exibição à Ronaldo (aquela de Alvalade), Dele Alli pegou de estaca nos Spurs e é hoje uma das grandes figuras, não só da equipa, mas de toda a competição. Alli é mesmo o segundo melhor marcador dos Spurs na Premier League, apenas batido por Harry Kane e é, seguramente, um dos melhores Sub-20 a nível mundial. Há poucas semanas, só mesmo Marco Asensio ultrapassava Alli como o jovem com mais “key passes” em toda a Europa.
Alli, que curiosamente, tal como Eric Dier, não encontrou espaço nos Sub-21 de Inglaterra no recente Europeu de 2015, já vai entretanto comendo etapas. Afinal, Hodgson não padece da mesma falta de visão de Southgate e facilmente entende que é pelos dois jovens médios dos Spurs que passa o futuro de Inglaterra. É o melhor que pode fazer. Aprender com o Tottenham de 2015/16 ou ignorá-lo, é o caminho que separará Inglaterra do sucesso e do insucesso em França.
APRENDER COM OS MELHORES EXEMPLOS
Se em 2014, para o Mundial brasileiro, Hodgson deveria ter tomado o futebol ofensivo do Liverpool como exemplo para o ataque ao título mundial (ou pelo menos, perto disso), em 2016 é o Tottenham Hotspur que deve ser emulado caso Inglaterra queira voltar a ter uma prestação de destaque num torneio internacional. É certo que Inglaterra (a própria federação) assume que só a partir de 2020 irá lutar por títulos internacionais, mas surge como um desperdício adiar a ambição tantos anos quando o elenco actual é suficientemente promissor e, bem orientado, capaz de ombrear com as melhores seleções europeias. E, para bater as Espanhas e as Alemanhas, não é a jogar à Leicester que o farão. Para aprender, é com os melhores exemplos.
E, em 2016, o Tottenham de Pochettino é o melhor exemplo nacional possível à disposição de Hodgson. Não só pela dinâmica que podem trazer de White Hart Lane jogadores como Danny Rose (caso Leighton Baines se continue a debater com problemas físicos), Kyle Walker/Kieran Trippier, Eric Dier, Dele Alli e Harry Kane (não seria estranho vê-los a todos como membros fulcrais do plantel de Inglaterra em França), mas principalmente porque é ao estilo de jogo completíssimo do Tottenham que Inglaterra deve ir buscar a sua inspiração. Se Pochettino não pode dirigir a equipa, que se lhe roube o génio.
Fortes a defender, implacáveis a atacar. O Tottenham em 2015/16 é de fácil resumo mas, seguramente, de difícil cópia. Afinal, não se copia a quase perfeição. Não há futebol tão completo na Premier League quanto o dos Spurs e, o segredo, mais que a organização e disciplina táctica, até está na disponibilidade física da equipa. É sabido que as equipas de Pochettino correm mais que todas as outras (o Liverpool de Klopp foi a única equipa capaz de correr mais que o Tottenham num confronto directo) e, ainda que nem correr muito seja correr bem, a verdade é que é a disponibilidade física que serve de base a todo o futebol dos Spurs. Permite que a equipa pressione a todo o campo, faça uma pressão altíssima durante todo o encontro (obrigando as defesas contrárias a serem precipitadas ou a bater, simplesmente, a bola para a frente) e permite que a equipa facilmente se reorganize em transição defensiva (a ocupação dos espaços em transição é impecável e a reação à perda de bola chega a ser sufocante), tal como permite que exploda para o ataque em transição ofensiva. E, com um onze tão completo e tão repleto de jogadores criativos (Alli, Eriksen, Kane), os Spurs são ainda bastante fortes em ataque organizado. A utilização da “falta útil” é uma característica do Tottenham de Pochettino, aniquilando assim qualquer sintoma de perigo vindo do adversário (os Spurs são mesmo a equipa que mais faltas comete na Premier League, especialmente em campo adversário, uma das que mais amarelos vê mas que, curiosamente, ainda está por ver um vermelho esta temporada).
Curioso é ainda o facto de os Spurs canalizarem o seu jogo pelo corredor central, algo bem mais complicado que explorar o jogo pelas alas (ainda que a propensão ofensiva de Rose e Walker seja enorme) e que, ao dia de hoje, soa até a antiguidade. A verdade, é que canalizar o momento ofensivo para o corredor central adequa-se na perfeição a uma Inglaterra estranhamente órfã de bons, e verdadeiramente desequilibradores, extremos (Sterling, por exemplo, é muito mais forte em zonas centrais que encostado à linha). São, aliás, de posições centrais, os melhores jogadores ingleses da actualidade: Barkley, Sterling, Kane, Sturridge, Alli ou Rooney, por exemplo.
Por tudo isto, Hodgson e Inglaterra só terão a ganhar caso tomem o Tottenham de Pochettino como um exemplo táctico para o próximo Europeu. Será este o ano do regresso da grande Inglaterra?